30 Setembro 2021
"A maior parte da pegada ecológica é emissão de CO2. Se a China zerar as emissões líquidas e reduzir o tamanho da população poderá diminuir o seu déficit ambiental", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia, em artigo publicado por EcoDebate, 29-09-2021.
“Assim como a Idade da Pedra não acabou por falta de pedras, a Era do Petróleo chegará ao fim, não por falta de óleo”.
Ahmed-Zaki Yamani
A China é o maior importador de combustíveis fósseis e o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo. Portanto, o “Império do Meio” depende de acordos geopolíticos para garantir o fornecimento de petróleo e gás, além de pagar um alto custo pela poluição e a degradação do meio ambiente.
Para reduzir a dependência dos exportadores de petróleo e gás, evitar a vulnerabilidade das rotas marítimas controladas por outros estados e descarbonizar a economia, a China pretende transformar sua matriz de geração de energia de aproximadamente 70% dos combustíveis fósseis hoje para 90% de fontes renováveis em 2050, conforme mostra o gráfico abaixo da Bloomberg Energia.
Foto: EcoDebate
A segurança energética sempre foi uma preocupação para a China, mas ganhou mais atenção depois que a cisão sino-soviética na década de 1960, que acabou com o fornecimento de petróleo soviético na época. Tornou-se uma prioridade maior quando a China se tornou um importador líquido de petróleo na década de 1990. No ano passado, a China respondeu por cerca de um sexto do consumo global de petróleo. Pouco mais de 70% disso veio do exterior. Os investimentos chineses de petróleo e o gás no exterior satisfizeram menos de um quinto de sua demanda doméstica e muito desse combustível viaja por gargalos como o Estreito de Malaca, vulnerável a um bloqueio naval, na visão de Pequim.
Pelo lado ambiental, o foco do presidente Xi Jinping tem sido na metas de pico de emissões antes de 2030 e líquido zero até 2060, em linha com o espírito do Acordo de Paris. As principais metas ambientais do governo para seu atual plano de cinco anos são reduzir o consumo de energia por unidade do PIB em 13,5% até 2025 e a intensidade de carbono em 18% no mesmo período.
Assim, diversificar as fontes de energia é uma necessidade ecológica, mas também visa aumentar a eficiência por razões geoestratégicas. O 14º Plano Quinquenal no início deste ano aliou a ambição verde ao foco na recuperação econômica e na segurança, com referências ao uso eficiente do carvão, à expansão dos estoques de petróleo e gás e à exploração doméstica. A China tem procurado construir sua Reserva Estratégica de Petróleo. Todavia, o abandono dos hidrocarbonetos é uma mudança em direção a alternativas nas quais Pequim tem um controle mais estreito da cadeia de abastecimento.
Porém, essa mudança não será instantânea. O consumo de energia da China aumentou no ano passado, mesmo com a pandemia que provocou uma queda em todo o mundo. A indústria pesada chinesa tem tido dificuldade para descarbonizar a produção. A Administração Nacional de Energia foi criticada por ser muito frouxa para evitar novas usinas de carvão – o combustível fóssil mais sujo – que ainda é responsável por mais da metade da matriz energética do país em 2021. Recentemente, a China tomou a decisão histórica de vender parte do petróleo que estocou em uma reserva estratégica há anos.
Abandonar o petróleo e carvão não vai ser fácil para o país. Agora, em setembro de 2021, a China vive uma crise energética grave e vários setores da indústria e dos serviços estão tendo de paralisar as atividades por falta de energia. Com os blecautes provocados pela escassez do suprimento de carvão, vários governadores de províncias pedem para o país importar carvão e afrouxar as metas ambientais.
Assim, fica claro que Pequim ainda ficará dependente da energia movida a carvão enquanto o crescimento econômico continuar sendo prioridade. Isto quer dizer que a mudança pode vir muito tarde, pois a crise climática já está mostrando imediatamente os danos no mundo todo. A China pretende gastar menos com importação de combustíveis fósseis e lucrar mais com a exportação de tecnologias verdes. Ou seja, as perspectivas de mudança energética são positivas, mas se o caminho da transição for longo poderá ter muitos impactos climáticos indesejados.
O gráfico abaixo mostra que a China tinha superávit ecológico no primeiro quinquênio da década de 1960, mas passou a ter déficits crescentes e chegou em 2017 com uma pegada ecológica per capita de 3,7 hectares globais (gha), para uma biocapacidade per capita de 0,92 gha. O déficit ecológico foi de 303%. O desafio é inverter a curva da pegada ecológica o mais rápido possível.
Foto: EcoDebate
Indubitavelmente, a China já vive muito acima dos seus meios e de seus recursos naturais, contribuindo para o desequilíbrio ambiental do Planeta. O desafio da sustentabilidade requer respostas complexas e soluções múltiplas. Sem dúvida, uma tarefa inadiável é promover o avanço tecnológico, a mudança da matriz energética, revolucionar a produção de alimentos e esforçar para o desacoplamento entre produção e recursos naturais. Mas isto só não basta. É preciso também reduzir a pegada ecológica e o número de “pés”, isto é, diminuir o consumo conspícuo e o número de consumidores. Neste ponto, a China será o primeiro dos 10 países mais populosos a iniciar o decrescimento demográfico (a população chinesa vai começar a diminuir no máximo até 2025 e deve haver uma redução de cerca de 400 milhões de habitantes até 2100).
A maior parte da pegada ecológica é emissão de CO2. Se a China zerar as emissões líquidas e reduzir o tamanho da população poderá diminuir o seu déficit ambiental. Mas precisará também mudar o paradigma do crescimento econômico desregrado e se preocupar menos com o tamanho do PIB (inclusive reduzindo gastos militares) e mais com a qualidade de vida humana e ambiental. Adicionalmente, a China pretende liderar o mundo na nova matriz energética que inclui a produção de equipamentos e grandes montantes de energia renovável, mas também veículos elétricos e a eletrificação dos meios de transporte.
As energias renováveis estão aumentando em todo o mundo, mas não suficientemente para evitar a expansão dos combustíveis fósseis. O gráfico abaixo, da REN21 (junho 2021) mostra que mesmo com toda a expansão das energias renováveis (que passaram de 8,7% para 11,2% no consumo final de energia global) os combustíveis fósseis continuam crescendo em termos absolutos (embora tenham mantido praticamente o mesmo percentual).
Foto: EcoDebate
Desta forma, fica claro que não basta apenas avançar com as energias renováveis. Certamente a China vai buscar hegemonizar o novo padrão de produção internacional, pois só os negacionistas acreditam na Terra plana e infinita. Mas além de mudar o padrão global de produção e consumo é preciso planejar o decrescimento demoeconômico (redução da pegada ecológica). Desta forma, superar a Era dos combustíveis fósseis é essencial e inadiável. Como mostra Jason Hickel: “Menos é mais”. A China e o mundo precisam de menos poluição e mais regeneração ambiental. Menos humanosfera e mais ecoesfera!
ALVES, JED. Ascensão e queda da civilização dos combustíveis fósseis, Ecodebate, 02/04/2014. Disponível aqui.
Ted Trainer. Can Renewable Energy Sustain Consumer Society, 2012. Disponível aqui.
UNEP. Global Trends In Renewable Energy Investment 2019, September 2019. Disponível aqui (link para download).
Jason Hickel. Less is more: Degrowth Will Save the World, 2020. Disponível aqui.
REN21, Renewables Global Status Report, June 2021. Disponível aqui.
Jonas Jorge da Silva. Enfrentar a crise climática é inadiável. “O ecocídio é também um suicídio”, avalia Diniz Alves, IHU, 18/05/2021. Disponível aqui.
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A pegada ecológica e a transição energética da China. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU